sábado, 7 de janeiro de 2017

SANTIDADE



A santidade é o princípio moral básico. A moralidade consiste justamente em selecionar alguns valores, atribuindo-lhes um status de inviolabilidade. Esses valores selecionados constituem os princípios fundantes de uma cultura e sua violação elicia sentimentos de repulsa, nojo e freqüentemente raiva acompanhada de ímpetos punitivos ou retaliatórios.

O Círio de Nazaré ilustra isso muito bem (da Matta, 1979). A Nossa Senhora vai no centro da procissão, cercada pelas autoridades e fiéis mais devotos. A santidade é protegida pela Corda do Círio, que circula a Santa, formando um rosário e resguardando-a do verdadeiro carnaval que rola por fora. O resguardo do círculo da moralidade requer o esforço cooperativo e competitivo de centenas de pessoas, já que a Corda do Círio tem 400 metros e pesa 700 Kg. A moralidade, a preservação da pureza, requer vontade e esforço.


 
Pode-se pensar no círculo da moralidade como sendo o equivalente aos preconceitos ou tabus cultivados por determinado grupo humano. Os motivos morais básicos de Caridade, Eqüidade, Liberdade, Autoridade, Lealdade e Santidade (Haidt, 2012) são estratégias evolutivamente estáveis que conferem sentido ao círculo moral. Podem ser compreendidos como slots que são epigeneticamente preenchidos de formas diversificadas através das culturas. Cada cultura confere um colorido local, específico. Mas os temas morais são universais e recorrentes.

O motivo moral santidade pode assumir vários significados. O mais notável deles é o religioso, associando a pureza à noção do divino e da transcendência. O tema da pureza vs. degradação tem, entretanto, uma origem alimentar, representando uma defesa contra o consumo de alimentos conspurcados. A repulsa ou nojo é a emoção moral básica.  O tema da pureza aparece, p. ex., no vegetarianismo sob a forma da noção de que a proteína de origem animal é tóxica. A adaptabilidade evolutiva é óbvia.

A entrada de um determinado tema no círculo da moralidade pressupõe a sua sacralização. P. ex., na atual cultura politicamente correta da vitimização, críticas a determinadas categorias sociodemograficas ungidas pelo sagrado são intoleráveis. Constituem sacrilégio, o qual desencadeia raiva e precisa ser denunciado e punido.

Apesar de não apenas os temas religiosos serem sacralizados, estes ocupam uma posição especial, ainda que vilipendiada no contexto cultural atual. Acho que junto com a Santíssima Trindade, a Virgindade de Maria e a Imaculada Concepção constituem os motivos sacros principais da nossa cultura ocidental, os quais não podem ser menosprezados. A tradição judaica sintetizou seus preceitos morais nos Dez Mandamentos, o verdadeiro patrimônio cultural da Humanidade. Todos os seis slots morais são preenchidos pelo Decálogo judaico-cristão, sendo mais notadamente santificadas a divindade e a autoridade (respeito a Deus e aos pais), a vida (Não matarás!), a lealdade (interdição de falso testemunho), a família (castidade, fidelidade conjugal, respeito aos pais) e a liberdade (propriedade privada). Dá pro gasto e sobra. Tem funcionado, ainda que imperfeitamente, nos últimos milhares de anos do Ocidente.

O Ocidente e o Cristianismo no qual se apóia andam em baixa. O Ocidente Cristão é denunciado como opressor e patriarcal. É toda uma ladainha por demais tão conhecida, que é desnecessário repeti-la aqui.  Todos sabemos do que se trata. Todos sabemos também que essas críticas e esse niilismo destruidor da religião, da família, da política, da filosofia e da ciência somente são possíveis no Ocidente. Ocidente esse que gradualmente gerou abundância e aprendeu a cultivar a tolerância. Tolerância essa que se assenta sobre a distinção entre a igreja e o estado e a democracia liberal. A agenda marxista cultural  parasita o Ocidente e, ao mesmo tempo, cuida de sabotar seus fundamentos. Não tenho paciência.

Tive uma formação católica. Fui batizado, fiz a Primeia Comunhão, li a Bíblia e estudei com os Salesianos e Jesuitas. Mas sou um homem de pouca fé. Falta-me o misticismo. Nunca consegui me ligar na religião, a não ser epstemologicamente como forma privilegiada de cognição. Só consegui apreender o sentido mais profundo da santidade lendo o livro do Adam Bellow (2004), intitulado “Em louvor do nepotismo”.

Adam Bellow é filho do famoso escritor Saul Bellow e trabalha como editor em Nova Iorque, além de ser um ativista políticoconservador. Na juventude ele gostava muito de estudar História. Na maturidade escreveu uma deliciosa interpretação evolucionista da História, chamando a atenção para a importância da família e do bom nepotismo em contraposição ao nepotismo do mal.

 
O livro do Adam Bellow me ajudou a compreender o significado real e as implicações mais remotas da Virgindade de Maria e da Imaculada Concepção. Até a leitura desse livro eu era muito influenciado pelas concepções feministas radicais contemporâneas, rasas e vulgares. Como, p. ex., as idéias de que a sociedade é patriarcal, machista, opressora das mulheres etc. Isso muitas vezes se expressa sob a forma de uma crítica a uma suposta dicotomia entre santa e prostituta. Como se a alma feminima não fosse nuançada e suportasse meios termos, tons de cinza. Como se as mulheres não tivessem ou não pudessem ter desejo sexual, como se elas devessem ser sempre submissas ao capricho do macho etc. etc.

O Bellow conta uma história completamente diferente. Argumenta que a visão apregoada e criticada da família patriarcal se aplica mais aos gregos e aos romanos. Na Grécia Antiga, as mulheres viviam encerradas no gineceu,  sendo protegidas como uma commodity valiosa do contato com outros machos potencialmente predatórios. Na Roma Antiga, o pater famílias tinha poder de vida e de morte sobre a mulher e os filhos. Basta mencionar esses fatos para saber do que se está falando.

Entre os judeus a história foi muito diferente. Tais como muitos semitas e islâmicos contemporâneos, os judeus começaram nômades e poligínicos. Até que se assentaram na Terra Prometida e evoluiu a monogamia. A monogamia é a exceção cultural, sendo praticada por uma fração ínfima das culturas humanas originais. A evolução da  monogamia representou o estabelecimento de uma parceria, ainda que pra lá de imperfeita, entre o homem e a mulher. As funções biológicas dos sexos são complementares na reprodução, mas as estratégias podem ser competitivas e parasitárias. A monogamia foi a melhor solução, ainda que imperfeita, encontrada para a guerra dos sexos. A monogamia é um dos aspectos mais intrigantes da evolução humana e se associa com o ciclo menstrual, com a ovulação disfarçada, com as mamas permanentemente túrgidas etc. Outra hora vou comentar sobre isso.

O Cristianismo operou em cima do Judaismo e da monogamia, introduzindo os preceitos da Santíssima Trindade, da Virgindade de Maria e da Imaculada Concepção. Da Santíssima Trindade deriva o dogma de que os homens são todos filhos de Deus e irmãos em Cristo. Isso é genial. Se são todos irmãos, então náo dá para ficarem sacaneando uns aos outros. Se são todos irmãos, isso vale também para as mulheres e crianças, que precisam ser respeitadas e protegidas.

Se Jesus Cristo foi concebido por obra do Espírito Santo e Maria permaneceu imaculada, então ela deve ser reverenciada pela sua pureza. E todas as mulheres em seu nome. Bellow acredita que esse é o germe - que ironia! -, da isonomia normativa entre homens e mulheres. Que não evoluiu de uma hora para outra, que não foi dada mas precisou ser conquistada gradativamente. As sementes da liberação feminina devem então ser procuradas na obra do Espirito Santo.

O Cristianismo levado ao pé da letra torna inevitável a liberação feminina, constituindo o seu arcabouço cultural comparativamente inédito. Essa conversa é bem diferente do papo marxistinha cultural habitual. O “patriarcalismo cristão” não é a causa da opressão das mulheres, mas a condição de possibilidade da sua liberdade e igualdade. Assim como Marx supostamente teria virado Hegal de ponta cabeça, Bellow subverteu o marxismo cultural.

A leitura do “Louvor do nepotismo” foi uma epifania. Representou uma conciliação entre a minha falta de fé e a minha formação católica. Ajudou a tornar-me uma pessoa mais íntegra, mais autêntica.

A preservação do patrimônio cultural judaico-cristão é do interesse de todos, mesmo daqueles que não tem fé. Espero que as razões tenham sido suficientemente esclarecidas acima. Obviamente que o Cristinianismo é dogmático. Não existe religião que não seja dogmática. O que importa é o exame comparativo dos dogmas. Os dogmas cristãos até que são bem razoáveis e adaptativos do ponto de vista evolutivo.

Os valores  sagrados cristãos estão sendo atacados por múltiplos lados. Por parte do radicalismo islâmico, por parte do consumismo-hedonismo-narcisismo, por parte do marxismo cultural e por parte de setores da própria Igreja Católica. Eu admirava o Papa Bento XVI. É m grande intelectual. Acho que a postura dele como Papa era lógica, coerente. Os dogmas da Igreja Católica são tais e tais. Há quem goste, há quem não goste. Mas eles não são pouca porcaria. Quem não gostar que vá tratar da vida. Passou-se a época na qual as pessoas eram obrigadas as ser cristãs ou católicas. Em outras culturas a religião é compulsória. No Ocidente não é mais e faz tempo.A Igreja Católica não precisa ficar abrindo mão dos seus dogmas, se conspurcando, para conquistar devotos. Nâo se trata de um concurso de popularidade, mas de um compromisso com uma fé e com valores.


Sem querer exercer dons divinatórios, acredito que o Bergoglio será uma decepção para os católicos. Ele não tem a dimensão humana e intelectual requerida de um Papa. É ideologicamente comprometido com uma agenda política e parece estar sempre querendo forçar a barra. Avança, assim como quem não quer nada, algumas declaraões que violam os dogmas da Igreja e depois volta para trás quando as reações são negativas. Nunca vi uma coisa igual, o cara é sempre mal interpretado pela imprensa. O que ele disse nunca era bem o que queria dizer. Parece que o seu compromisso é maior com a agenda eesquerdista do quem com os dogmas da Igreja. Hà muito se foi o dom da infabilidade papal. Mas esse cara está abusando da dessacralização. Não está à altura do Papado. Não me representa.

Então por que uma religião e uma igreja que têm todo um histórico de realizações culturais deveria abrir mão de seus dogmas em favor de dogmas políticos de esquerda da teologia da libertação ou em nome do consumismo e hedonismo desenfreado? Qual é a vantagem de abrir mão dos valores sagrados cristãos, testados e aprovados ao longo de milênios, por outros tão ou mais arbitrários quanto e com todo um histórico prévio de “realizações”  destrutivas, inclusive genocidas?  Nâo vejo o que se ganharia se, eventualmente, descartássemos o Cristianismo. Face à inevitabilidade do sagrado, apenas trocaríamos seis por meia dúzia.

Referências

Bellow, A. (2004). In praise of nepotism: A natural history. New York: Doubleday. Existe uma ótima tradução brasileira.

da Matta, R. (1979), Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar.

Haidt, J. (2012). The righteous mind. Why good people are divided by politics and religion. New York: Pantheon.

5 comentários:

  1. Oi, Vitor!

    Sempre vale a pena ler o que você escreve. Mesmo depois de 20 anos de convivência continuo aprendendo coisas novas com você.
    Esse povo modernista sempre fala da santidade com um ar de desprezo, como se ela se tratasse apenas de um instrumento de opressao social anacrônico, obscurantismo, resultado da preguiça de intelectuais desgostosos com livre arbítrio. Ou seja, nada que pessoas livres, emancipadas e iluminadas pelas luzes da razão (pura) devessem levar mais a sério do que uma mera curiosidade antropológica típica de sociedades e indivíduos mais primitivos.
    Mas a santidade é isso mesmo? É como aquele elefante de porcelana horroroso em cima da mesa da sala herdado da sogra falecida e que a gente queria quebrar e jogar fora mas nao pode sob pena de chatear muito a patroa?
    É óbvio que isso é uma caricatura, particularmente no caso do cristianismo. O cristianismo é o fundamento de todos os princípios de conduta ética e moral mais elevados que a humanidade já concebeu. O judaísmo deu a sua contribuicao como antecessor e coadjuvante na sociedade ocidental, mas o quente mesmo é o cristianismo. Tem um livro genial do Eric Voegelin chamado "The Political Religions" em que ele mostra como ao longo da história os diferentes níveis de ordem e autoridade vao sendo cada vez melhor definidos. No Egito o chefe de estado era também o representante da autoridade divina. Lá hvia uma fusao completa entre autoriade estatal e autoridade divina, ir contra um é automaticamente ir contra o outro. No judaísmo, pela primeira vez na história, Deus é um só e é onipresente. A descricao do carro de Deus feita por Ezequiel no exílio da Babilônia foi um progresso imenso na capacidade de abstracao da humanidade. Nenhuma cultura antes do Judaísmo tem uma idéia tao precisa de onipresenca. Além disso, no Judaísmo o rei como representante da autoridade terrena tem competências muito diferentes das dos sacerdotes, que eram os representantes oficiais da autoridade divina. Mais interessante ainda é a função dos profetas, que desafiavam a autoridade oficial e em quem em tempos de perrenga a comunidade decidia seguir. Do ponto de vista social o cristianismo radicaliza a atividade do profeta, pois Jesus não somente falava em nome de Deus contra ambas autoridade terrena e a autoridade divina oficial, ele é Deus, a Torá encarnada como pessoa humilde o suficiente para se deixar crucificar. Pela primeira vez na história da humanidade, a santidade é definida no âmbito de uma relação pessoal de confiança em Jesus Cristo. Confiar na palavra de Jesus Cristo é um ato de liberdade absoluto, posto que para o homem comum não há evidência palpável de que o que ele diz seja verdade. A distinção entre a antiga ordem terrena e a moral social, por um lado, e a ordem transcendente e ética do amor à pessoa concreta do próximo, por outro lado, nao poderia ser mais perfeita. A proximidade entre o ser humano mais fraco e desvalido e Deus não pode ser maior. Consequentemente, a noção de santidade atinge seu sentido mais profundo e abrangente. A força metafísica da santidade cristã é muito maior que a de qualquer outra religião. Um exemplo disso que eu gosto muito vem do livro história de uma alma, de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela diz que Deus ama no jardim mais as flores sem graça do que as exuberantes porque quanto menor a criatura por Ele amada, maior Ele tem que ser.
    Desde o momento glorioso da história da humanidade que foi o surgimento do cristianismo, seus detratores se empenham ou em reduzí-lo a uma forma religiosa mais terrena, primitiva e inofensiva, ou em utilizar-se de seu refinado caminho metafísico até a santidade para emprestar força de transcendência e autoridade a agentes da ordem terrena.
    Tanto os marxistas, como notórios engenheiros da concentração de poder, quanto os islamistas radicais entenderam como utilizar esse desprezo à santidade típico da sociedade moderna alérgica ao pensamento clássico e escolástico como útil ferramenta de trabalho.

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    1. Concordo com tudo que você fala sobre o Cristianismo. Até me dá vontade de ter alguma fé.

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  2. (Parte II)

    Os islamistas pretendem que Jesus tenha sido apenas mais um profeta assim como Maomé. Isso obviamente reduz o cristianismo a uma religiao mais primitiva em que a autoridade terrena e a autoridade transcendente estão mais fundidas e a autoridade religiosa suprema está mais na comunidade e no comportamento explícito do que na consciência individual em sua relação pessoal com Deus.
    Já os marxistas adotam uma estratégia dupla: Pela frente combatem todas as manifestaçoes culturais e sociais da santidade por meio da desmoralização de seus símbolos e instituiçoes pelo mundo afora. Para isso utilizam-se de um pequeno número de ideólogos treinados e grandes massas de indivíduos que se identificam como florzinhas insignificantes no jardim de Deus não por experiência religiosa mas pelas razoes fornecidas pelos ideólogos: falamos aqui dos ambientalistas radicais, gayzistas, abortistas, feministas radicais, etc...
    Pelas costas os marxistas ficam muito satisfeitos em exercer o poder que a atividade de profetas de uma nova ordem lhes confere. Em conjunto, o que os marxistas fazem pela frente e pelas costas da humanidade resulta em uma acumulacao gradativa do poder econômico, de comunicacao e de vida e morte em grupos cada vez menores de pessoas, e a banalizacao da moral, da vida e da santidade, posto que cada um pode escolher suas próprias razoes para considerar-se santo no jardim marxista.
    O futuro mostrará quanto do legado cristão para o aprofundamento do conhecimento moral e ético assim como para a civilização foi realmente compreendido pelo ser humano.
    P.S. Vitor, espero que você esteja enganado sobre o Papa Francisco. Apesar de ele ser jesuíta e insistir em manter um canal de diálogo com islamitas e marxistas, ainda assim não consigo não gostar dele. Ao que eu pude averiguar, até agora todas as suas supostas declaraçoes polêmicas foram criadas pela grande imprensa e não correspondem à realidade.

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    1. Mas é engraçado que essas confusões não ocorriam com o São João Paulo II e com o Bento XVI. Você não acha notável que o Bergoglio seja sempre tão mal interpretado? A imprensa esquerdista nunca conseguiu pegar no pé do Ratzingre, que é de direita, foi o famigerado perseguidro do Boff etc. etc. Nem assim eles coneguiram distorcer o que o Ratzinger falava. E agora com o Bergoglio, que é notoriamente de esquerda, surgiu essa de distorcer as falas dele. Acho muito esquisito isso.

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